Deus retribuirá a cada um segundo as suas obras | Dom Lucas Henrique Lorscheider

 


Liturgia Diária
Quarta-feira 28ª Semana do T. Comum
São Calisto I, Papa, Memória


Caríssimos irmãos e irmãs em Cristo, reunidos à luz da Palavra e no ardor da fé, hoje somos conduzidos por uma mensagem profundamente exigente, mas cheia de misericórdia e esperança. As leituras que a liturgia nos apresenta — da Carta aos Romanos, do Salmo e do Evangelho segundo São Lucas — nos convidam a uma reflexão sobre o julgamento de Deus, a hipocrisia religiosa e a necessidade de uma conversão sincera do coração. E a memória litúrgica de São Calisto I, Papa e Mártir, confere a esta celebração uma tonalidade especial de fidelidade e coragem diante das perseguições e das tensões internas da própria Igreja.

São Calisto, que viveu no início do século III, foi um homem profundamente marcado pela experiência da misericórdia divina. Antes de ser Papa, foi escravo, sofreu calúnias e prisões, e ao tornar-se Bispo de Roma, foi criticado por seu espírito de perdão e acolhida aos pecadores arrependidos. Assim, sua vida é um testemunho vivo do que São Paulo nos ensina hoje: “Deus retribuirá a cada um segundo as suas obras” (Rm 2,6), mas o julgamento divino é permeado por justiça e misericórdia — duas faces inseparáveis da santidade de Deus.

Vamos, pois, caminhar juntos nesta homilia de meditação e conversão, pedindo que o Espírito Santo abra o nosso coração, para que compreendamos que o juízo de Deus não é condenação, mas um chamado à verdade interior e à autenticidade da fé.

A primeira leitura, tirada da Carta de São Paulo aos Romanos (2,1-11), é uma das mais densas e teologicamente vigorosas de toda a Escritura. O Apóstolo denuncia com clareza a incoerência daqueles que julgam os outros, mas vivem de modo igual ou pior:

“Tu que julgas, fazes o mesmo que condenas!” (Rm 2,1)

Paulo escreve a uma comunidade dividida entre judeus e gentios convertidos. Os judeus, orgulhosos por possuírem a Lei de Moisés, muitas vezes julgavam os outros como impuros ou indignos. No entanto, São Paulo mostra que a verdadeira justiça não consiste em ter a Lei, mas em viver segundo o espírito da Lei, que é o amor e a obediência a Deus.

Essa advertência é de uma atualidade impressionante. Quantas vezes, na vida cristã, caímos na armadilha de julgar os outros com base em aparências, esquecendo que o único justo juiz é o Senhor? Quantas vezes olhamos para os erros dos outros com severidade e para os nossos com complacência?

Deus não julga como os homens. Sua justiça é medida pelo amor. Ele não faz distinção de pessoas — “pois em Deus não há parcialidade” (Rm 2,11). Todos seremos julgados, não pelo prestígio, pela posição ou pelas aparências, mas pela sinceridade de nosso coração e pela verdade das nossas obras.

São João Crisóstomo comenta este trecho dizendo:

“Nada é mais odioso a Deus do que a hipocrisia. O hipócrita não engana a Deus, mas a si mesmo.”

O julgamento de Deus, portanto, não é uma ameaça, mas uma revelação. Ele desvela o que há de autêntico ou de falso em nós. E a Palavra de hoje nos convida a deixar que o Espírito Santo ilumine nossos corações, revelando onde ainda há duplicidade, orgulho e falta de amor.

No Evangelho de Lucas 11,42-46, Jesus dirige duras palavras aos fariseus e aos doutores da Lei. “Ai de vós, fariseus!” — diz Ele — “pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as ervas, mas descuidais da justiça e do amor de Deus!”

Essas palavras de Cristo não são uma rejeição da Lei, mas uma denúncia da deformação da fé que transforma a religião em formalismo. Os fariseus cumpriam minuciosamente os ritos exteriores, mas esqueciam o essencial: a misericórdia, a compaixão e a verdade.

É importante lembrar que os fariseus não eram pessoas más. Pelo contrário, eram religiosos devotos, conhecedores da Escritura. O problema estava no coração endurecido que substitui o amor pela aparência, a fé viva pela vaidade espiritual. Jesus mostra que a verdadeira piedade não se mede por rituais externos, mas pela capacidade de amar a Deus e ao próximo.

São Gregório Magno escreve, em uma de suas homilias:

“Aquele que se vangloria de observar os mandamentos, mas despreza o pecador, já perdeu o espírito da lei que cumpre.”

Hoje, vivemos uma sociedade onde a aparência pesa mais do que a essência. Nas redes sociais, nas relações pessoais e até nas comunidades religiosas, somos tentados a parecer bons em vez de ser santos. Jesus, no entanto, nos chama à autenticidade: ao jejum que vem do coração, à oração feita no silêncio e à caridade sem ostentação.

Quando o Senhor diz: “Ai de vós, porque amais os primeiros lugares nas sinagogas e as saudações nas praças!” (Lc 11,43), Ele denuncia o orgulho espiritual que busca reconhecimento humano. Mas o discípulo autêntico, segundo o coração de Cristo, vive na humildade do serviço e no anonimato do amor.

O Salmo 61(62) ecoa essa tensão entre o juízo e a misericórdia divina:

“A minha alma repousa somente em Deus, dele vem a minha salvação” (Sl 61,2).

O salmista proclama uma confiança inabalável em Deus como o único juiz e refúgio. Ele não se apoia nas aparências, nem em riquezas, mas na fidelidade divina. Essa confiança é o caminho da conversão que São Paulo e Jesus nos propõem: sair da autossuficiência e entrar no repouso da graça.

Converter-se, portanto, não é apenas mudar de comportamento, mas mudar de centro. É deslocar o foco de si mesmo para Deus. É deixar de buscar a glória própria para desejar unicamente a glória de Cristo.

A hipocrisia nasce do medo — medo de ser visto como fraco, medo de perder o status. Mas a confiança em Deus liberta. Ela nos permite ser autênticos, confessar nossas misérias e acolher o perdão.

A verdadeira conversão é humilde, silenciosa e perseverante. E só é possível quando reconhecemos que não somos juízes, mas pecadores necessitados de graça.

Neste contexto, é belíssimo contemplar a figura de São Calisto I, cuja memória hoje celebramos. Ele foi Papa em tempos de intensas controvérsias dentro da Igreja. Acusado de ser “demasiado misericordioso”, Calisto acolhia pecadores públicos e concedia perdão a quem sinceramente se arrependia — algo que escandalizava os rigoristas de seu tempo, especialmente o grupo de Hipólito, que o chegou a acusar de laxismo moral.

Mas Calisto compreendia a verdade profunda do Evangelho: a justiça de Deus se manifesta na sua misericórdia. Ele entendia que negar o perdão era ofender o próprio Cristo, que morreu pelos pecadores.

Em sua vida, vemos um reflexo perfeito da tensão entre justiça e amor que São Paulo descreve e que Jesus revela. Ele sabia que o juízo pertence somente a Deus e que o ministério da Igreja é o da reconciliação. Por isso, foi fiel até o fim, dando a vida pelo Evangelho que pregava.

São Calisto é, portanto, um exemplo luminoso para o nosso tempo. Num mundo cada vez mais polarizado — entre o rigorismo frio e o permissivismo vazio — ele nos recorda que a verdadeira fidelidade está no equilíbrio do amor. Ser fiel à verdade sem perder a caridade; ser firme na doutrina, mas aberto à misericórdia; defender a santidade da Igreja sem fechar as portas do coração de Deus.

Vivemos tempos em que o julgamento fácil tornou-se parte da cultura. Julgamos pessoas por ideologias, estilos de vida, aparência, opiniões e até pela forma como expressam sua fé. As redes sociais amplificam essa tendência: todos opinam, todos condenam, poucos escutam e quase ninguém perdoa.

A Palavra de Deus, porém, nos convida a nadar contra essa corrente. O cristão é chamado não a julgar, mas a discernir; não a condenar, mas a restaurar; não a humilhar, mas a elevar.

Quando Jesus denuncia os fariseus, não é para destruir, mas para curar. Seu “ai de vós” é um grito de amor ferido, não de ódio. Ele quer abrir os olhos daqueles que se perderam na própria vaidade. Assim também a Igreja, quando adverte, o faz por amor, chamando todos à conversão.

Hoje, a hipocrisia pode se manifestar de muitas formas: na indiferença aos pobres, na dureza com os pecadores, na falta de compaixão com quem pensa diferente. Mas o cristão autêntico é aquele que vive a coerência do Evangelho com humildade e ternura.

A coerência cristã não é perfeição moral, mas inteireza de coração. É viver de modo que nossas palavras, gestos e escolhas reflitam o amor de Cristo.

E aqui voltamos ao núcleo da mensagem de hoje: “Deus retribuirá a cada um segundo as suas obras” (Rm 2,6).
Não se trata de medo, mas de responsabilidade. Nossas obras revelam nossa fé. A oração, o dízimo, o jejum — tudo perde o sentido se não for expressão de amor.

O Papa Francisco costuma dizer:

“O Senhor não se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir perdão.”

Deus não busca perfeição sem falhas, mas corações que não se endurecem. Ele quer filhos que reconheçam suas fraquezas e que se abram à graça.

Caríssimos irmãos e irmãs, a liturgia de hoje é um espelho diante do qual devemos nos olhar. Ela nos mostra que não basta cumprir preceitos exteriores se o coração permanece fechado. É necessário abrir-se à ação transformadora do Espírito Santo, que faz novas todas as coisas.

O exemplo de São Calisto I nos ensina que a santidade não é rigidez, mas amor até o sacrifício. A justiça de Deus é inseparável da sua ternura.

Que hoje possamos pedir ao Senhor a graça de viver com autenticidade, sem máscaras, sem duplicidade. Que sejamos justos, mas misericordiosos; fiéis à verdade, mas compassivos com as fragilidades alheias.

Rezemos com o salmista:

“Em Deus está a minha salvação e a minha glória, ele é a rocha do meu refúgio.” (Sl 61,8)

E concluamos com as palavras de Jesus:

“Dai antes o que está dentro, e tudo ficará puro para vós.” (Lc 11,41)

Assim seja.

 LUCAS HENRIQUE LORSCHEIDER


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