A fé que justifica e liberta | Dom Lucas Henrique Lorscheider

 


Liturgia Diária
Quinta-feira 28ª Semana do T. Comum
São Edviges e Santa Margarida Maria Alacoque, Memória


Caríssimos irmãos e irmãs,

A liturgia da Palavra de hoje nos coloca diante do coração do Evangelho: a justificação pela fé, a misericórdia de Deus que perdoa o pecador e o drama da hipocrisia religiosa que impede o homem de acolher o amor de Deus. E, de modo muito providencial, a Igreja nos faz celebrar neste mesmo dia a memória de Santa Edviges, mulher de profunda caridade e desapego dos bens terrenos, e de Santa Margarida Maria Alacoque, confidente do Sagrado Coração de Jesus, que revelou ao mundo a ternura e a dor do amor divino que deseja ser correspondido.

Essas duas santas são testemunhos luminosos da fé de que fala São Paulo na Carta aos Romanos — fé que se traduz em vida, em obras de amor, em entrega total a Deus — e são, ao mesmo tempo, o antídoto contra a atitude dos fariseus do Evangelho, que se fecham na própria autossuficiência e não deixam o amor de Deus transformar seus corações.

São Paulo escreve aos Romanos, e hoje fala também a nós:

“Agora, sem depender da Lei, manifestou-se a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas: justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo, para todos os que creem” (Rm 3,21-22).

Aqui está o núcleo da teologia paulina. A salvação é um dom gratuito de Deus, oferecido a todos os homens, não como prêmio pelas obras, mas como graça acolhida pela fé.

O apóstolo destrói a ideia de que alguém possa justificar-se por si mesmo. “Todos pecaram”, diz ele, “e estão privados da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (Rm 3,23-24).

A palavra “redenção” — em grego apolýtrōsis — significa literalmente resgate, libertação do cativeiro. O homem, escravizado pelo pecado, é libertado não por seus próprios méritos, mas pelo sangue do Cordeiro, que é Cristo.

Paulo apresenta aqui o mistério central da fé cristã: a justiça de Deus não é condenação, é misericórdia; não é castigo, é salvação.

Essa justiça divina não se manifesta no rigor de um juiz que pune, mas na compaixão de um Pai que se abaixa para levantar o filho caído. A cruz é, portanto, o tribunal de Deus: ali o pecado é julgado e destruído, e o pecador é justificado e amado.

É interessante que Paulo repete várias vezes a expressão “sem distinção”:

“Deus é o mesmo para todos, Ele justifica o circuncidado pela fé e o incircuncidado mediante a fé” (Rm 3,30).

Com isso, ele elimina toda superioridade humana. Ninguém é salvo porque é “melhor”, mais piedoso ou mais observante da lei. Todos dependemos da misericórdia. Todos estamos no mesmo nível diante de Deus: mendigos da graça.

Santa Edviges, duquesa da Silésia, compreendeu isso profundamente. Mulher de nobre origem, vivia cercada de luxo e poder, mas, iluminada pela fé, compreendeu que a verdadeira nobreza está na humildade diante de Deus. Dedicou-se à caridade, fundou mosteiros, cuidou dos pobres, dos doentes e dos prisioneiros. Mesmo depois de enviuvar, renunciou aos bens terrenos e viveu em pobreza voluntária, confiando unicamente em Deus.

A sua fé não foi teórica, mas prática, vivida. Ela entendeu que “a justiça de Deus pela fé” se traduz em obras de misericórdia, em compaixão ativa, em amor concreto. Santa Edviges é exemplo daquela fé viva que transforma o coração e muda o mundo.

O Salmo responsorial de hoje é um dos mais comoventes de toda a Escritura: o De profundis, o “Do fundo do abismo clamo a Ti, Senhor!”

“Do fundo do abismo clamo a vós, Senhor, escutai a minha voz! Se levardes em conta nossas faltas, quem haverá de subsistir?” (Sl 129,1-3).

Este salmo é o clamor do homem que reconhece o próprio pecado e, ao mesmo tempo, descobre a imensidão da misericórdia de Deus.

O salmista não argumenta, não justifica, não tenta se defender. Ele se lança no abismo do amor divino. “No Senhor está a misericórdia, e com Ele a redenção copiosa.”

Essa expressão — “redenção copiosa” — ecoa perfeitamente a doutrina de São Paulo: somos salvos pela abundância da graça, e não pela perfeição das nossas obras.

É um salmo profundamente pascal: do abismo da dor nasce a esperança; do pecado brota o perdão; da morte surge a vida.

Santa Margarida Maria Alacoque viveu intensamente essa experiência espiritual. Em suas visões do Sagrado Coração, Jesus lhe mostrava um coração “tão inflamado de amor pelos homens” e, ao mesmo tempo, tão ferido pela indiferença e ingratidão de muitos.

Ele a chamou a ser apóstola da reparação: oferecer a própria vida como resposta de amor ao amor rejeitado.

O que é isso senão o mesmo movimento do salmo? Clamar “do fundo do abismo” não é apenas pedir perdão, é também amar aquele que primeiro nos amou.

Margarida Maria nos ensina que a fé viva é uma resposta de amor ao amor de Cristo. É confiança, entrega, abandono. É o coração que, mesmo ferido pelo pecado, se deixa curar pelo Coração de Jesus.

Hoje, em tempos de tanta frieza espiritual, de indiferença religiosa, o Sagrado Coração continua a nos dizer: “Eis este Coração que tanto amou os homens e nada recebeu em troca senão ingratidões.”

Santa Margarida Maria é o eco humano desse amor divino que não se cansa de amar.

O Evangelho de Lucas (11,47-54) é duro e incisivo. Jesus denuncia a falsidade dos fariseus e doutores da Lei, que se gloriam de construir túmulos para os profetas, mas não escutam a Palavra de Deus.

“Ai de vós, que construís túmulos para os profetas! No entanto, foram vossos pais que os mataram. Assim sois testemunhas e aprovais as obras de vossos pais.”

É a denúncia da incoerência: os mesmos que exaltam os santos do passado são os que rejeitam os profetas do presente. Os mesmos que veneram os mártires são os que perseguem os vivos que anunciam a verdade.

Jesus vai além: chama essa atitude de cumplicidade. Ao homenagear exteriormente os profetas mortos, eles escondem o fato de que continuam a matar a profecia viva.

E o Senhor conclui com uma frase que deve nos fazer refletir profundamente:

“A esta geração se pedirá conta do sangue de todos os profetas derramado desde a criação do mundo.”

A hipocrisia religiosa é o maior obstáculo à fé. É o pecado dos que falam de Deus, mas não O amam; dos que frequentam o templo, mas não se deixam converter.

Os fariseus de ontem continuam presentes hoje em cada um de nós, sempre que usamos a religião como máscara, sempre que julgamos os outros e não olhamos o próprio coração.

E, paradoxalmente, o que Jesus denuncia aqui é justamente a ausência daquilo que Paulo chama de “fé”: a confiança viva e humilde no amor misericordioso de Deus.

A religião sem fé é formalismo. A fé sem amor é arrogância. A fé verdadeira é humilde, aberta, confiante e misericordiosa.

Santa Edviges e Santa Margarida Maria nos mostram como a verdadeira fé é libertadora. Nenhuma delas viveu uma religião de aparência: ambas viveram uma religião de amor.

Edviges, embora nobre, vestia-se com simplicidade e servia os pobres de forma oculta. Margarida Maria, humilhada e incompreendida até dentro do convento, perseverou no amor a Cristo sem rancor nem revolta.

Elas não construíram túmulos para os profetas: foram, elas mesmas, profetas vivas do Evangelho.

Há, irmãos, um ponto de encontro entre a Carta aos Romanos e o Evangelho de hoje: a relação entre fé e obras.

São Paulo não despreza as obras, mas afirma que as obras sem fé são vazias. Jesus, por sua vez, denuncia as obras feitas por vanglória e aparência, sem amor.

Ambos nos ensinam que o que salva é o amor que brota da fé.

Santa Edviges mostra a fé em forma de caridade: ela viveu o desapego radical dos bens terrenos para que nada a separasse do amor de Cristo. Santa Margarida Maria mostra a fé em forma de reparação: ela se uniu ao Coração de Jesus, oferecendo sua vida pelos pecadores.

Em ambas, a justificação não é ideia, mas vida transformada.

No mundo de hoje, onde reina o orgulho espiritual e a superficialidade religiosa, precisamos redescobrir essa fé viva. Muitos cristãos creem de modo teórico, intelectual, mas não confiam de coração. Outros fazem obras, mas sem amor, buscando aplausos ou reconhecimento.

A liturgia de hoje é um apelo à coerência: crer e viver como quem foi realmente salvo. A fé verdadeira gera humildade, gratidão e serviço.

Essas duas santas, celebradas no mesmo dia, são como dois espelhos que refletem a mesma luz.

  • Santa Edviges, duquesa e mãe, é a expressão da fé que se traduz em obras de misericórdia e em total confiança na providência. É a mulher que se esvaziou de tudo para possuir o tudo de Deus.
  • Santa Margarida Maria, religiosa visitandina, é a expressão da fé que mergulha no mistério do amor redentor de Cristo e se consagra ao Coração que tanto ama.

Ambas viveram a palavra de São Paulo:

“O homem é justificado pela fé, independentemente das obras da Lei.”

Mas é importante entender que a fé que justifica é aquela que age pelo amor (cf. Gl 5,6).

Santa Edviges acreditou e amou servindo os pobres.
Santa Margarida acreditou e amou reparando as ofensas feitas ao Coração de Jesus.

Uma viveu a caridade visível; a outra, a caridade interior. Uma atuou no mundo; a outra, no claustro. Mas ambas foram movidas pela mesma graça: o amor gratuito de Deus.

O mundo moderno vive uma crise semelhante à denunciada por Jesus: uma fé de fachada, uma religiosidade sem conversão. Há muitas homenagens aos santos, mas pouca imitação dos santos.

Fala-se muito de caridade, mas se esquece a cruz. Fala-se de fé, mas se foge do compromisso.

Santa Edviges e Santa Margarida Maria vêm nos recordar que a fé cristã é real, concreta, exigente.

De Edviges aprendemos o desapego, a confiança na providência, o amor aos pobres. Num tempo em que tantos buscam riqueza, status e segurança material, ela nos mostra o caminho da simplicidade.

De Margarida Maria aprendemos a centralidade do Coração de Jesus: amar, reparar, consolar. Num tempo de tanta indiferença e frieza, ela nos convida a redescobrir o amor ardente de Cristo, a rezar diante do Sacrário, a participar da Eucaristia com o coração unido ao d’Ele.

O mundo precisa de corações semelhantes ao de Jesus — e isso começa em cada um de nós.

Vivemos em tempos de violência, desunião e orgulho. Precisamos de cristãos que irradiem o amor de Deus, que vivam a fé de modo autêntico e misericordioso.

A fé de Abraão, a justiça de Deus, o perdão do salmo, a denúncia profética de Jesus e o exemplo das santas convergem num mesmo chamado: voltar ao essencial.

Caríssimos irmãos, a liturgia de hoje é um retrato completo da vida cristã.

São Paulo nos diz que a salvação é graça; o salmo nos ensina a confiar no perdão; Jesus nos adverte contra a hipocrisia; e as santas que celebramos nos mostram como viver isso concretamente.

Tudo converge para um ponto: a fé viva, humilde e amorosa que nos une a Cristo.

Essa fé faz de nós instrumentos de misericórdia, construtores de comunhão e portadores de esperança.

Santa Edviges e Santa Margarida Maria nos mostram que, quando confiamos plenamente em Deus, Ele transforma a nossa vida em bênção para os outros.

Que, como elas, sejamos pessoas de oração, de amor concreto e de coração ardente. Que o Sagrado Coração de Jesus seja nosso refúgio e nossa força; e que, como Santa Edviges, saibamos viver desapegados de tudo o que passa para abraçar o que é eterno.

Rezemos:

Senhor Jesus, que justificais o pecador pela fé, fazei de nós homens e mulheres de confiança e humildade.
Purificai nossos corações de toda hipocrisia e fazei-nos viver o amor que salva.
Que, a exemplo de Santa Edviges e Santa Margarida Maria, aprendamos a amar os pobres, a consolar o vosso Coração e a viver na esperança da vossa misericórdia.
Amém.

 LUCAS HENRIQUE LORSCHEIDER


Post a Comment

Postagem Anterior Próxima Postagem