Vigilância e esperança | Dom Lucas Henrique Lorscheider

 


Liturgia Diária
Sexta-feira 27ª Semana do T. Comum
São Martinho de Tours, bispo, Memória


Queridos irmãos e irmãs em Cristo,

Hoje a liturgia nos convida a refletir sobre a urgência da conversão, o poder de Deus sobre o mal e a importância de discernir entre luz e trevas. As leituras nos chamam a tomar consciência da realidade espiritual: Joel fala sobre a gravidade do pecado e o anúncio de tempos de julgamento, o salmo nos lembra que o Senhor é justo e defende os oprimidos, e Jesus, no Evangelho de Lucas, alerta para o combate espiritual, mostrando que a verdadeira luta não é contra pessoas, mas contra as forças do mal.

Celebramos também hoje a memória de São Martinho de Tours, bispo e testemunha da caridade cristã, que dedicou sua vida à oração, à penitência e ao serviço do próximo. Ele nos inspira a viver a fé com coragem, discernimento e entrega a Deus, aprendendo a julgar com justiça e a combater o mal com amor.

O profeta Joel descreve um quadro de calamidade e alerta: o povo está chamado à penitência diante da iminência do juízo divino. Ele convoca todos os habitantes da terra a jejuar, a lamentar e a voltar-se para Deus:

“Gritei, lamentei, convertei-vos ao Senhor com jejum, com choro e com pranto” (Jl 2,12-13).

As imagens do livro de Joel são fortes: gafanhotos devorando a terra, terra seca e árida, cidades assoladas — tudo isso simboliza as consequências do pecado e da infidelidade a Deus. Deus permite que o mal se manifeste, não para destruir, mas para chamar à conversão.

Do ponto de vista teológico, vemos três dimensões:

  1. O reconhecimento do pecado: Joel exorta o povo a perceber os efeitos destrutivos do afastamento de Deus. Hoje, essa chamada é atual: vivemos num mundo marcado pelo egoísmo, pela violência, pelo relativismo moral, pelo descuido com a criação.

  2. A necessidade de arrependimento e mudança: não basta lamentar; é preciso voltar-se para Deus, transformar a vida, reparar os danos.

  3. A esperança na misericórdia de Deus: mesmo diante do juízo, Deus oferece a possibilidade de reconciliação, de renovação.

Assim, Joel nos ensina que o sofrimento e as dificuldades não são meros castigos; são convites à conversão, oportunidade para nos aproximarmos do Senhor.

O salmista ecoa a mensagem de Joel, mas acrescenta um tom de confiança:

“O Senhor há de julgar o mundo inteiro com justiça; Ele julga os povos com equidade” (Sl 9,8).

O salmo nos apresenta a visão de Deus como juiz justo, que defende os pobres e oprimidos, e que não deixa impune a injustiça. Ele é soberano sobre toda a criação, e nada escapa ao seu olhar.

Do ponto de vista espiritual, o salmo nos ensina três atitudes fundamentais:

  1. Confiança na justiça divina: mesmo quando o mal parece triunfar, Deus vê e julgará com equidade. Isso nos liberta da ansiedade e do desejo de vingança.

  2. Compromisso com a justiça: como instrumentos de Deus, somos chamados a agir em favor dos fracos e oprimidos, refletindo o juízo divino.

  3. Oração como arma espiritual: o salmista clama a Deus em confiança. A oração não é apenas pedir, mas alinhar o nosso coração com a vontade de Deus e participar de sua obra de justiça.

Portanto, a justiça de Deus não é abstrata, mas prática: é a justiça que transforma vidas, sociedades e corações.

No Evangelho, Jesus descreve a realidade do combate espiritual, alertando sobre a necessidade de discernimento:

“Todo reino dividido contra si mesmo será destruído; toda casa dividida contra si mesma não poderá subsistir” (Lc 11,17).

Jesus cura e expulsa demônios, mostrando que o mal existe, mas é vencido pelo poder de Deus. Ele adverte que o pecado não é apenas uma questão ética ou social; há forças espirituais que operam na história humana, procurando destruir a unidade, gerar confusão e escravizar o coração.

A parábola do espírito impuro que sai de um homem e retorna, encontrando a casa varrida e em ordem, simboliza o perigo da neutralidade espiritual: quem não se dedica a viver plenamente a fé, a oração e a virtude, corre o risco de ser novamente dominado pelo mal.

Jesus nos dá uma lição: a vitória sobre o mal exige ação consciente, oração e conversão contínua. Não basta evitar o pecado; é preciso cultivar a vida interior, a virtude e a presença de Deus no coração.

As leituras de hoje se complementam:

  1. Joel nos alerta para a gravidade do pecado e a necessidade da conversão.
  2. O salmo nos assegura que Deus é justo e defende os fracos.
  3. Jesus nos ensina a combater o mal com oração, discernimento e fidelidade.

O eixo central é a vigilância espiritual, que se manifesta em três dimensões:

  • Pessoal: reconhecer nossas limitações, pecados e tendências ao mal; cultivar oração e penitência.
  • Comunitária: viver em unidade com a família, paróquia e sociedade, evitando divisões e promovendo a paz.
  • Espiritual: discernir a presença do mal e a ação de Deus, confiando na sua força e buscando o Espírito Santo como guia.

Essa integração nos leva a compreender que a fé não é passiva: ela exige vigilância, coragem e perseverança.

Como aplicamos tudo isso nos nossos dias?

a) Vigilância pessoal

O mundo contemporâneo está repleto de distrações e tentações: consumo desenfreado, relativismo moral, redes sociais, violência simbólica e física. Cada pessoa precisa cultivar o exame de consciência diário, oração regular e participação ativa nos sacramentos, especialmente na Eucaristia e na Confissão.

b) Combate ao mal social

As estruturas de pecado, como a injustiça social, a exploração, a corrupção e a indiferença aos pobres, exigem de nós ação concreta. Não basta esperar que Deus aja sozinho; somos chamados a ser instrumentos da justiça e da misericórdia divina.

c) Perseverança na oração

O Evangelho nos ensina que a oração não é apenas um momento ocasional, mas uma disciplina de vida. Devemos rezar para pedir graça, discernimento e força para vencer o mal e promover o bem. A oração fortalece a unidade da nossa vida interior, evitando a divisão e a confusão.

Celebrar São Martinho de Tours nos dá um exemplo concreto de vigilância e ação no mundo. Como bispo, ele foi vigilante na fé, enfrentou heresias, cuidou dos pobres e propagou o Evangelho com coragem.

Martinho nos mostra que a conversão pessoal se traduz em ação concreta na sociedade. Ele não se limitou à oração, mas a transformou em caridade prática. Sua vida é testemunho de que fé, oração e justiça social são inseparáveis.

Joel alerta que o juízo de Deus é real, mas sempre acompanhado de misericórdia. A advertência do profeta não é para gerar medo, mas para chamar à conversão. A liturgia nos desafia a refletir:

  • Onde ainda existe desordem interior em minha vida?
  • Quais são os “espíritos impuros” que me afastam de Deus?
  • Como posso, inspirando-me em São Martinho, trabalhar pela justiça e misericórdia no mundo?

A conversão não é apenas um ato momentâneo, mas um processo contínuo de alinhamento com a vontade de Deus, cultivando virtudes e combatendo o pecado.

O combate espiritual não é solitário. Jesus prometeu o Espírito Santo, que nos dá força, discernimento e perseverança. A oração, como nos ensina o Evangelho, nos mantém em comunhão com o Espírito e nos protege do mal.

O Espírito nos ensina a:

  • Reconhecer o pecado e as áreas de divisão;
  • Desenvolver misericórdia e perdão;
  • Persistir na oração mesmo diante da tentação e da dificuldade;
  • Promover unidade e reconciliação na família, comunidade e sociedade.

A Igreja é chamada a ser luz em meio às trevas do mundo. Assim como São Martinho, que se dedicou à evangelização e à defesa da verdade, a comunidade cristã deve:

  • Rezar em conjunto;
  • Ser testemunha de justiça e misericórdia;
  • Acolher os afastados e orientar os perdidos;
  • Proteger os fracos e os vulneráveis.

A unidade da Igreja reflete a unidade do Reino de Deus, e a oração constante é o cimento que mantém essa unidade.

Queridos irmãos, como viver hoje a Palavra de Deus? Algumas orientações concretas:

  1. Discernimento espiritual: identificar as influências que nos afastam de Deus.
  2. Conversão diária: revisar atitudes, corrigir erros e pedir perdão.
  3. Oração perseverante: não apenas pedir coisas, mas buscar o Espírito Santo para agir em nós.
  4. Justiça e caridade: transformar a fé em ações concretas a favor dos necessitados e oprimidos.
  5. Inspirar-se nos santos: imitar São Martinho e outros que viveram a fé de forma prática e corajosa.

A liturgia de hoje nos convoca a duas atitudes fundamentais: vigilância e esperança.

  • Vigilância: porque há forças do mal que tentam nos desunir, enfraquecer nossa fé e nos afastar da misericórdia de Deus.
  • Esperança: porque Deus é justo e fiel, e concede aos que O buscam o Espírito Santo, a força para perseverar e vencer.

Ao celebrar a memória de São Martinho de Tours, aprendemos que a oração, a caridade e a fidelidade à verdade são caminhos seguros para enfrentar as dificuldades do mundo sem medo. Joel nos lembra que a conversão é urgente; o salmo nos assegura que Deus julga com justiça; e Jesus nos ensina que a oração perseverante nos dá força contra o mal.

Que possamos, inspirados pelo exemplo de São Martinho, viver com coragem, fé e confiança no Senhor, combatendo o mal com oração, promovendo a justiça e a misericórdia, e mantendo sempre os olhos fixos no Reino de Deus.

Amém.

 LUCAS HENRIQUE LORSCHEIDER

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